domingo, 16 de outubro de 2016

LADO A LADO



Maria desceu do ônibus com olhos marejados, peito apertado, rumo ao encontro com seu filho depois de anos, sem saber bem como iria encontrá-lo. Joana ficou no ônibus, mas fez recomendações a ela: — Mãe desce aqui, atravessa a rua e espera ele chegar, depois me liga. E na volta pede a ele pra te levar no ponto. As recomendações eram porque Maria não ia à cidade já há muito tempo; ficava sempre entre a casa da filha e no sítio, dividindo sua vida com o companheiro e os outros filhos.
Maria acenou com a cabeça, em sinal de que havia entendido tudo o que a filha recomendara e foi, e Joana ficou olhando pela janela do ônibus até ele fazer a curva. Ela não podia descer com Maria, pois tinha de ir fazer a inscrição de um curso e aquele dia era o último dia do prazo.
Joana e Maria já há algum tempo estavam lutando juntas, mas tudo havia ficado mais duro quando Maria recebeu a notícia da doença do filho. Ele, desde muito tempo já não convivia com elas, pois por opção foi viver no mundo, nas ruas, e acabou descobrindo que estava soropositivo para o vírus HIV. Para Maria, era como se a vida os estivesse punindo por algo, e com isso ela se culpava, e se perguntava: — Onde eu falhei? E agora? Como vou poder ajudar?
Maria, enquanto estavam no ônibus, lembrou dos tempos em que o filho era pequeno e a acompanhava a todos os lugares, e perguntou: — Joana, lembra dele pequeno? Era tão guloso! E Joana respondeu: — Claro que lembro, mamãe! E enquanto a vovó fazia a comida ele ficava no canto da parede gritando: — Vó, camida, arroz-feijão! E a vovó dizia: — Espera, menino! Já está quase pronto!
Joana, triste, relembrando os tempos de criança, refletiu: — Onde foi que o perdemos? Mas não teve resposta. Ficou ali, no ônibus, olhando as ruas que passavam rápidas por seus olhos marejados. Pensando na dor de Maria e também na sina do irmão.
Depois de orientar a mãe e seguir para cuidar de suas coisas, Joana ficou atenta a qualquer sinal do celular, pois sua mãe ia ligar dando notícias do filho. E só no fim da tarde, quando ela voltava pra casa, o telefone tocou: — Alô, alô, mãe? É você? Alô!
Do outro lado: — Joana? — Oi, filha, sou eu! Encontrei ele, sabe. Ele está morando num quartinho... precisando de tudo, filha: fogão, alimentos, roupas; os amigos dele têm ajudado muito, mas... — Olha, filha, já estou no ponto do ônibus, e chegando em casa eu te conto.
Quando Joana desligou o telefone passou como um filme por sua cabeça: — Como será que ele está? Meu Deus! Imagino como minha mãe deve estar cansada, triste, com fome. E foi direto para casa, fazer uma janta e ficar à espera de Maria, para saber em detalhes a situação do irmão.
Maria e Joana lutam todos os dias: passam juntas a semana. Maria ajuda Joana a criar sua filha. E somente nos finais de semana Maria vai para sua casa, no sítio, ver o companheiro, cuidar das suas plantas e dos bichos de estimação, e ver se alguém mais precisa dela por lá.
Joana e a filha sentem saudades dela em tudo; a casa fica um silêncio. Faz falta até o cheiro do cigarro que ela fuma às cinco da manhã na janela da cozinha, os cheiros de comida pela sala, os barulhos das panelas, e de vez em quando uma cantiga cantada à meia voz. Nos finais de semana é quando Joana percebe a solidão de sua vida e do destino da maioria das mulheres que vivem sozinha com seus filhos. Mas quando Maria chega na segunda-feira, conta os “causos” dela, riem juntas, e depois Joana segue para o trabalho, na certeza de que na volta ela estará lá esperando, com sua filha bem-cuidada.
Muitas vezes, Joana fica temerosa de perdê-la; gostaria de ter tempo para curtir a vida, passear com a filha, presentear a mãe. Mas nem sempre isto é possível. Por isso, agora, ela está tão preocupada com a situação do irmão. Este tem sido o destino de muitas mulheres negras: lutar para sobreviver, sem ter a chance de gozar a vida. Muitas delas sobrevivem sem ter ao menos uma vida digna.
Mas Joana sempre diz a Maria que ela é sua eterna fonte de inspiração! Também, quando olha para a filha, sabe que aquela criança representa tudo o que de melhor ela foi capaz de pôr neste mundo.
E, enquanto espera a mãe chegar, com os olhos marejados, o coração apertado, pega um papel e começa a escrever:

Nada tenho nessa vida além de sonhos, de vocês duas e de minha fé. As pessoas que encontrei na vida, com essas nem sempre pude contar, todas fazem a parada que têm que fazer e partem. Umas deixam marcas, outras não, mas tudo que sou vem do ventre, do sangue e da força dessa matriarca nagô. O que tenho doei para gerar minha cria, meu fruto nesta terra, todo meu sangue, minha força e meu amor.

Quando Maria chega, estava cansada, muito cansada! Há muito tempo que ela não andava de condução para tão longe. Com tristeza nos olhos e voz embargada, contou: — Joana, você não imagina a situação dele! Dá pena de ver! Descobriu a doença há pouco tempo! Está triste, revoltado, achando que a vida é muito injusta. Mas está se tratando. Mora perto do hospital, e vai todos os dias tomar os remédios. Pediu sua ajuda. Ele dorme no chão, tem que levar roupa de cama, fogão, panela e comida. Abaixou a cabeça e as lágrimas pingaram no colo daquela mãe, naquele colo que tantas vezes foi o consolo e o conforto daquele filho.
Joana respirou fundo e, emocionada, disse: — Mãe, o que eu puder fazer, eu faço, pois ele é meu irmão, meu sangue. Quando a senhora vai voltar lá? Maria disse: — Na semana que vem, foi o que combinei com ele.
Maria e Joana passaram aquela semana fazendo planos de rever o enfermo, para ajudar no que fosse possível. Embora as duas, quando iam dormir, pensavam cada uma a seu modo, em como ele estaria dormindo, e no porquê de tudo aquilo que estava acontecendo, ao amanhecer, nenhuma falava de seus pensamentos para a outra, pois temiam causar ainda mais tristeza.
Elas sabiam que, lado a lado, fariam de tudo para cuidar uma da outra e de quem mais precisasse delas. O que ambas não sabiam é que sua força e coragem vinham do fato de elas, mesmo em silêncio, compartilharem dores e afeto.

Elaine Marcelina

Rio, 17/2/2016

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