quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Da série Mulheres Incríveis: MÃE BEATA DE IEMANJÁ







Mãe Beata de Iemanjá

Existem coisas de que tenho muito orgulho: de ser negra, ser mãe de quatro filhos e ter milhões de filhos pelos quais eu sinto a mesma dor, sinto o meu peito aleitar para amamentá-los. Sou amante, sou mãe, sou advogada, sou médica, sou conselheira, sou psicóloga. Eu sou tudo na vida. Outros orgulhos especiais que me dão muita garra: de ser nordestina, de não ter sucumbido, de a vaidade não ter corroído a minha identidade e a minha humildade não ter feito de Beatriz Moreira Costa, Mãe Beata de Iemanjá, tirar o pé do chão ou perder sua essência de negra e de mulher. Cada palavra que dou, com minha porta aberta, sei que me fortaleço. Eu sou semianalfabeta. Eu mesma me alfabetizei, eu mesma fiz todas as universidades do mundo, de todas as ONGs, eu mesma fiz com o meu caminho. Então, eu não posso ter medo e digo: se eu morrer por ser intrépida, por ser ousada, eu só quero que digam assim...a última coisa, quando botarem o último torrão de terra, digam: “Estamos botando o último torrão de terra na Luther King Mulher”. Existe uma coisa dentro de nós que sufoca tudo. É o livre arbítrio. Você dizer assim eu sou, eu quero. Às vezes, as pessoas falam: “Mãe Beata, a senhora tá numa mesa não sei aonde, e a senhora vai ter que falar isso, assim, assim, assim”. Eu digo: “Eu vou ter que falar sobre isso. Eu pego um papel e coloco na mesa”. Como foi na Petrobras. Pediram para eu falar de igualdade. Comecei logo atacando o poder: “No Brasil, se fala em igualdade? A Petrobras está querendo construir uma verdadeira igualdade, qual a igualdade? Igualdade do asfalto com a igualdade do morro e da favela. Se um dos senhores me disser o sinônimo de uma dessas três palavras, eu falarei em igualdade...” E aí, meti o pau. Igualdade de um ladrão e uma mulher que roubou uma margarina, porque estava com os filhos passando fome. Eu a defendi. É uma coisa que eu digo, em qualquer parte do mundo, porque eu boto mesmo pra quebrar. Essa mulher, por estar com os quatro filhos com fome, passou num botequim e pegou a margarina. Entenda, eu não estou fazendo apologia ao crime, eu estou falando da desigualdade e da falta de respeito. Esta mulher negra, pobre, moradora de um bairro da periferia, foi presa, levou um mês e vinte e seis dias no xadrez, apanhou e foi estuprada. Saiu, pegou quatro anos em semiaberta. Eu lhes pergunto: “E o homem que roubou as pedras preciosas e levou para fora do País, será que não é ladrão? Quem é mais ladrão? Será que eu posso chamar de ladrão Delfim Neto, Collor e outros ladrões da cueca, os ladrões da maleta. Já não basta o que eles têm no meio das pernas? E os que roubam o dinheiro do INSS? Esses são os verdadeiros ladrões. Será que, para essa mulher, houve igualdade?” Eu sou uma mulher negra semianalfabeta. Por que será que minha fala é ouvida? Eu não tenho medo de morrer. Onde estiverem três negros reunidos para discutir os seus direitos, eu estarei lá, pé no chão, com fome, cabelo desgrenhado ou com pano na cabeça, com minhas contas. Não deixo a minha identidade. Pode ver meus braços, não devo nada a ninguém. Se me convidarem para um casamento, e eu quiser ir assim, eu vou. Não mandei me convidar. Convidaram-me porque quiseram e por que eu vou negar a minha identidade, se isso me faz bem? Eu, com meu pano na cabeça, com meu cabelo trançado, sou muito vaidosa. Com minhas unhas feitas, mas se eu quiser chegar lá de pé no chão, eu vou. É a minha identidade, é o meu chão brasileiro. Será que eles vão construir esta igualdade, com direito de ir e vir? A minha filha trabalha no DEGASE, na Ilha do Governador, com mulheres, com adolescentes. Vive em área de risco toda hora. Lá tem mais negros. Eu tenho uma lista enorme.Tem só meninas negras. Será que as brancas e as mulatas, como eles dizem, não praticam crimes? Não são bandidas? A honra que eu mais tenho na vida é quando me chamam de negra. Negro é identidade, é raiz. Negro é liberdade. Negro é saber. Negro é consciência. Negro é você enxergar com mais de dois
olhos. Negro é você fazer sua voz chegar onde você quer. Negro é você sentir o perfume que você quer. Eu não preciso que ninguém me construa. Eu sou eu, Beata de Iemanjá, Yalorixá do Ylê Omi Ojuaro, que não deixo a Baixada Fluminense por nada, não deixo a Rua Francisco, porque aqui eu acabei de criar meus filhos. [...]

Leia essa e outras histórias no livro Mulheres Incríveis 3ª ed. – Editora Nandyala, autora: Elaine Marcelina





Nenhum comentário:

Receita da felicidade

RECEITA DA FELICIDADE Ingredientes: 100 gramas de alegria 150 gramas de amor puro 500 gramas de bom humor 200 gramas de energia ...