Maria desceu do ônibus com olhos marejados, peito
apertado, rumo ao encontro com seu filho depois de anos, sem saber bem como
iria encontrá-lo. Joana ficou no ônibus, mas fez recomendações a ela: — Mãe
desce aqui, atravessa a rua e espera ele chegar, depois me liga. E na volta pede
a ele pra te levar no ponto. As
recomendações eram porque Maria não ia à cidade já há muito tempo; ficava sempre
entre a casa da filha e no sítio, dividindo sua vida com o companheiro e os
outros filhos.
Maria acenou com a cabeça, em sinal de que havia
entendido tudo o que a filha recomendara e foi, e Joana ficou olhando pela
janela do ônibus até ele fazer a curva. Ela não podia descer com Maria, pois
tinha de ir fazer a inscrição de um curso e aquele dia era o último dia do prazo.
Joana
e Maria já há algum tempo estavam lutando juntas, mas tudo havia ficado mais
duro quando Maria recebeu a notícia da doença do filho. Ele, desde muito tempo já
não convivia com elas, pois por opção foi viver no mundo, nas ruas, e acabou descobrindo
que estava soropositivo para o vírus HIV. Para Maria, era como se a vida os estivesse punindo
por algo, e com isso ela se culpava, e se perguntava: — Onde eu falhei? E
agora? Como vou poder ajudar?
Maria, enquanto estavam no ônibus, lembrou dos tempos
em que o filho era pequeno e a acompanhava a todos os lugares, e perguntou: — Joana,
lembra dele pequeno? Era tão guloso! E Joana respondeu: — Claro que lembro,
mamãe! E enquanto a vovó fazia a comida ele ficava no canto da parede gritando:
— Vó, camida, arroz-feijão! E a vovó
dizia: — Espera, menino! Já está quase pronto!
Joana, triste, relembrando os tempos de criança, refletiu:
— Onde foi que o perdemos? Mas não teve resposta. Ficou ali, no ônibus, olhando
as ruas que passavam rápidas por seus olhos marejados. Pensando na dor de Maria
e também na sina do irmão.
Depois de orientar a mãe e seguir para cuidar de suas
coisas, Joana ficou atenta a qualquer sinal do celular, pois sua mãe ia ligar dando
notícias do filho. E só no fim da tarde, quando ela voltava pra casa, o telefone
tocou: — Alô, alô, mãe? É você? Alô!
Do outro lado: — Joana? — Oi, filha, sou eu! Encontrei
ele, sabe. Ele está morando num quartinho... precisando de tudo, filha: fogão,
alimentos, roupas; os amigos dele têm ajudado muito, mas... — Olha, filha, já
estou no ponto do ônibus, e chegando em casa eu te conto.
Quando Joana desligou o telefone passou como um filme por
sua cabeça: — Como será que ele está? Meu Deus! Imagino como minha mãe deve
estar cansada, triste, com fome. E foi direto para casa, fazer uma janta e
ficar à espera de Maria, para saber em detalhes a situação do irmão.
Maria e Joana lutam todos os dias: passam juntas a
semana. Maria ajuda Joana a criar sua filha. E somente nos finais de semana Maria
vai para sua casa, no sítio, ver o companheiro, cuidar das suas plantas e dos
bichos de estimação, e ver se alguém mais precisa dela por lá.
Joana e a filha sentem saudades dela em tudo; a casa
fica um silêncio. Faz falta até o cheiro do cigarro que ela fuma às cinco da
manhã na janela da cozinha, os cheiros de comida pela sala, os barulhos das
panelas, e de vez em quando uma cantiga cantada à meia voz. Nos finais de
semana é quando Joana percebe a solidão de sua vida e do destino da maioria das
mulheres que vivem sozinha com seus filhos. Mas quando Maria chega na segunda-feira,
conta os “causos” dela, riem juntas, e depois Joana segue para o trabalho, na
certeza de que na volta ela estará lá esperando, com sua filha bem-cuidada.
Muitas vezes, Joana fica temerosa de perdê-la; gostaria
de ter tempo para curtir a vida, passear com a filha, presentear a mãe. Mas nem
sempre isto é possível. Por isso, agora, ela está tão preocupada com a situação
do irmão. Este tem sido o destino de muitas mulheres negras: lutar para
sobreviver, sem ter a chance de gozar a vida. Muitas delas sobrevivem sem ter
ao menos uma vida digna.
Mas Joana sempre diz a Maria que ela é sua eterna
fonte de inspiração! Também, quando olha para a filha, sabe que aquela criança representa
tudo o que de melhor ela foi capaz de pôr neste mundo.
E, enquanto espera a mãe chegar, com os olhos
marejados, o coração apertado, pega um papel e começa a escrever:
Nada tenho nessa vida
além de sonhos, de vocês duas e de minha fé. As pessoas que encontrei na vida, com
essas nem sempre pude contar, todas fazem a parada que têm que fazer e partem. Umas
deixam marcas, outras não, mas tudo que sou vem do ventre, do sangue e da força
dessa matriarca nagô. O que tenho doei para gerar minha cria, meu fruto nesta
terra, todo meu sangue, minha força e meu amor.
Quando Maria chega, estava cansada, muito cansada! Há muito
tempo que ela não andava de condução para tão longe. Com tristeza nos olhos e
voz embargada, contou: — Joana, você não imagina a situação dele! Dá pena de
ver! Descobriu a doença há pouco tempo! Está triste, revoltado, achando que a
vida é muito injusta. Mas está se tratando. Mora perto do hospital, e vai todos
os dias tomar os remédios. Pediu sua ajuda. Ele dorme no chão, tem que levar
roupa de cama, fogão, panela e comida. Abaixou a cabeça e as lágrimas pingaram
no colo daquela mãe, naquele colo que tantas vezes foi o consolo e o conforto
daquele filho.
Joana respirou fundo e, emocionada, disse: — Mãe, o
que eu puder fazer, eu faço, pois ele é meu irmão, meu sangue. Quando a senhora
vai voltar lá? Maria disse: — Na semana que vem, foi o que combinei com ele.
Maria e Joana passaram aquela semana fazendo planos de
rever o enfermo, para ajudar no que fosse possível. Embora as duas, quando iam
dormir, pensavam cada uma a seu modo, em como ele estaria dormindo, e no porquê
de tudo aquilo que estava acontecendo, ao amanhecer, nenhuma falava de seus
pensamentos para a outra, pois temiam causar ainda mais tristeza.
Elas sabiam que, lado a lado, fariam de tudo para
cuidar uma da outra e de quem mais precisasse delas. O que ambas não sabiam é
que sua força e coragem vinham do fato de elas, mesmo em silêncio, compartilharem
dores e afeto.
Elaine Marcelina
Rio, 17/2/2016
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