Vanda
Ferreira
Meu
nome é Vanda Maria de Souza Ferreira, tenho 64 anos. Eu nasci em Niterói, no dia
20 de novembro de 1947. Minha mãe é de Niterói também. Na verdade, a população
negra de Niterói é oriunda dos escravizos de Campos, de Vassouras, de Minas.
Então, Niterói não tem uma população escrava, tem uma diáspora negra oriunda do
interior do Estado, até porque Niterói era capital do antigo Estado do Rio de
Janeiro, era a cidade onde as moças e rapazes das fazendas vinham para
completar os seus cursos, porque as melhores escolas estavam na Capital. E essa negrada vem em busca de emprego melhor, fugitivo ainda no
período da escravidão e, após a
proclamação da República, à procura de algum emprego melhor. Niterói, ela é indígena. Eu, criança, convivi com tribo indígena. Eu nasci no local perto do Morro do Bumba, que não era Morro do Bumba.
Aquilo ali era resquício de terras com árvores frutíferas, ingá, sapoti, manga, jabuticaba, jamelão e uma gruta onde tinha alguns índios, que se
chamavam Bugas do Cubango. E não sei dizer a você se a palavra “Cubango” é
Bantu ou se é uma palavra indígena, mas Niterói é muito indígena. Aqueles
morros ali, Morro do Abacaxi, na
orla da Alameda São Boa Ventura... Eu,
quando criança, ouvia muito dizer que encontravam roupas de índios, objetos indígenas. Então, a
negrada de Niterói é realmente oriunda das senzalas. Meu pai nasceu
naquele morro ao lado da Ponte
Rio-Niterói, onde tem o pedágio, do lado direito tem um
morro que tem uma igrejinha, aquele
morro chama-se Morro da Conceição.
Minha avó foi violentada, e ela não dizia quem era o seu pai, logo depois ela arruma um companheiro, tem uma filha, mas não resiste, outra família pega a
minha tia e vai para o Bairro da Engenhoca.
Apesar de o meu pai ter seis aninhos, ele tinha clareza de que ele tinha uma irmã. Era uma menina
que tinha nascido, só não sabia se
tinha sido registrada ou não e ele cresce com essa preocupação de encontrar essa irmã. Outra tia, que mora no mesmo morro, pega o meu pai pra criar.
Aí, papai fica lá e ela morre
também. Fica o papai e a prima. Eles foram considerados irmãos e o padrasto era alcoólatra. Naquela época, já tinha, no morro, as tias que ficavam tomando
conta das crianças, para que as outras
mulheres viessem trabalhar nas casas
de família e já uma orquestração de
botar para trabalhar na rua. Havia uma senhora que ela fazia mingau e amendoim para essas crianças venderem na rua e tinha que trazer o dinheiro.
Isso eu fico elucubrando: quem não
trazia o dinheiro, fazia o que para trazer o dinheiro? Porque tinha que trazer. E, naquela época,
pelo menos em Niterói, aqui
no Rio me parece que era preto e branco,
a Polícia, o camburão da Polícia era preto e vermelho, era chamado de “flamenguinho”. E ela sempre ameaçava
que, quem chegasse sem dinheiro, ela ia chamar o “flamenguinho” e colocar no
SAM. O SAM é, hoje, o prédio da FAETEC,
em Quintino, que se chamava Serviço de
Assistência ao Menor. Hoje, eu faço uma avaliação: por pior que ele pudesse
ter sido naquele momento, onde só abrigava crianças negras, que
as mães precisavam trabalhar e não
tinham com quem deixar, dá de mil a zero em qualquer instituição de menor.
Hoje, nós temos algumas pessoas importantes, no cenário da política, que vieram
de lá do SAM. E por eles não saberem tratar do cabelo nosso, todo mundo chegava
e raspava a cabeça. Então, ficava menino e menina como se fosse uma coisa só. E
era um regime muito severo, não resta a menor dúvida, mas aprendia-se a ler e a
escrever, a tocar música, e era a extensão geográfica que é hoje. Não, não, não
fui pro SAM, mas estou dizendo que
esta senhora ameaçava as crianças que, se não trouxessem o dinheirinho, levaria
pro SAM. E, no imaginário coletivo
daquele momento, o SAM era o lugar
de criança sem donos, pretos, pobres, piolhentos.
Então, a própria criança tinha muito medo,
porque a mãe que colocava ali só podia ver as crianças uma vez por mês. Mas,
por pior que tivesse sido, como eu falei, fico elucubrando: deu um nível de instrução,
uma qualificação profissional, e a área geográfica é essa toda que tem hoje a FAETEC. Você vê que instituição
fechada que foi criada. Depois, anos
mais tarde, ali passa a ser FUNABEM,
mas
a primeira instituição fechada após a Abolição, que o Estado cria para pegar os
filhos dos escravos, é o SAM. E
um belo dia, o meu pai não conseguiu vender os amendoins. Ele tava subindo o morro, viu uma viatura do “flamenguinho” e ele imaginou: “Pro SAM, eu não quero ir”. Ele foge, entra
em um barco de pescadores, vem para
a Praça XV, fica sendo um menino de
rua na Praça XV. Depois, vai pra
Lapa. Foi, por algum tempo, menino de
recado de Madame Satan, conviveu com toda essa malandragem e, depois, ele se
estabelece no Saara. [...]
Leia essa e outras histórias no livro
Mulheres Incríveis 3ª ed. – Editora Nandyala, autora: Elaine Marcelina
Nenhum comentário:
Postar um comentário