A
relíquia da favela
Aos quase 70 anos, ele ainda mora na
favela. Ele, que por um motivo torpe, virou celebridade. Ele, que no auge de
sua dor, ouviu tanta coisa dolorosa. Mas que agora ouve também coisas boas. Ele,
que neste momento da vida, acorda cedo e vai pra rua, porque trabalhou durante 41
anos ininterruptos, sem nunca ter tempo pra vadiar, e não consegue ficar em
casa parado. Ele, que nunca, nem em sonho, se envolvera com qualquer situação errada
ou criminosa, foi alvo de tiro em uma famosa incursão da polícia na favela,
aquele local que para ele e para os seus é somente seu local de moradia. Por
isso mesmo, sim, por morar na favela, foi que levou uma "bala
perdida", dessas que sempre acham alguém na frente, e desta vez este
alguém foi ele.
Correria e gritos. Susto, desespero e sangue
pra todo lado. A bala varou sua coxa e quase pega uma veia principal. O médico
disse que foi por pouco. Se tivesse acontecido, hoje ele seria finado. Mas pôde
voltar pra casa depois de muitos dias no hospital. Por conta dessa fatalidade
passou a ser chamado de "Relíquia da Favela", e ainda hoje, após
passado um bom tempo do ocorrido, ele ainda recebe visitas. Gente que vem
conhecer e conversar. Mas recebe também os curiosos e até algum jornalista, que
perguntam como foi o ocorrido daquela noite que todos querem esquecer. Ele diz
que dói lembrar. Mas a cada dia a dor dele vai se transformando em dor crônica
por ver o cenário da cidade na situação em que está, com tudo o que vem
ocorrendo no Rio de Janeiro, nas favelas, nos bairros. Sem distinção. O
sofrimento é de todos. Dos novatos e dos antigos que sempre viveram ali. Ele
sempre foi tão bem-quisto na favela que hoje leva até o apelido que ganhou da
comunidade. Ele é um sobrevivente. Ele tornou-se a Relíquia da Favela.
Mas já não vai mais sentar na mureta do
quintal, nas noites de lua clara, para tocar seu violão e cantar os sambas que a
mulher e os filhos pediam, e ficavam ouvindo e pedindo bis. Ele hoje é a
relíquia da favela porque voltou pra casa, e sobreviveu para contar mais uma
história de bala perdida.
Elaine Marcelina
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